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Embora seja mais comum em idades avançadas, a demência pode ocorrer também entre pessoas mais jovens e, quando se manifesta antes dos 65 anos, é classificada como precoce. Esses casos representam cerca de 8% do total de registros de demência no mundo. Por ser mais rara, a condição não foi tema de tantos estudos científicos e o entendimento geral até pouco tempo atrás era de que ela tinha uma influência grande de genes herdados – contra os quais não podemos fazer nada.
Mas um novo estudo, publicado em dezembro no periódico científico Jama Neurology, identificou 15 fatores que aumentam o risco de desenvolvimento de demência precoce, revelando que a maioria deles são preveníveis ou modificáveis por ações individuais ou por políticas públicas. Aparecem nessa lista baixa escolaridade, diabetes, histórico de acidente vascular cerebral, uso abusivo de álcool, entre outros fatores (veja todos eles abaixo).
“Pela primeira vez, um estudo revela que somos capazes de agir para reduzir o risco dessa condição debilitante, focando em uma variedade de diferentes fatores”, destacou David Llewellyn, professor da Universidade de Exeter e um dos autores do estudo, em comunicado divulgado pela instituição. “Nossa pesquisa abre novos caminhos ao identificar que o risco de demência de início precoce pode ser reduzido”, completou Janice Ranson, pesquisadora da mesma universidade.
Para realizar o estudo, pesquisadores das universidades de Maastricht, na Holanda, e de Exeter, no Reino Unido, acompanharam por mais de uma década cerca de 365 mil voluntários com menos de 65 anos e sem diagnóstico prévio de demência. Eles passaram por exames e questionários para coleta de dados sobre seu estado clínico e hábitos de vida. Com base em estudos prévios sobre demência, os cientistas elencaram 39 potenciais fatores de risco para demência e pesquisaram quais deles estariam mais relacionados à manifestação precoce da doença.
Ao final do monitoramento dos voluntários, em 2021, os pesquisadores observaram 485 casos de demência precoce no grupo e, por meio da análise dos dados, elaboraram a lista dos 15 fatores de risco associados ao desenvolvimento do problema.
É verdade que a genética desempenha um papel mais importante nas demências de início precoce do que entre aquelas que aparecem após os 65 anos, mas, em ambos os cenários, os genes não são, isoladamente, os responsáveis pela maioria dos casos.
“Nas demências depois dos 65 anos, a chance de ser de um gene herdado é de 1%, enquanto nas de início precoce é de 10%”, diz o psiquiatra Paulo Mattos, pesquisador do Instituto D’Or de Pesquisa e Ensino (IDOR) e ex-professor da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). “O que o estudo demonstrou é que há fatores de risco modificáveis e que, portanto, podemos trabalhar com prevenção. Estudos anteriores já demonstraram que atuar sobre fatores de risco modificáveis poderia evitar ao menos 40% dos casos de demência”, afirma.
Ele refere-se sobretudo a um relatório produzido por uma comissão de cientistas de todo o mundo e publicado em 2020 no periódico científico The Lancet que listou 12 fatores modificáveis que poderiam evitar ou retardar o aparecimento de 40% dos casos do problema. Com base nesse trabalho, pesquisadores brasileiros calcularam que, no País, essa intervenção poderia ter impacto ainda maior, com redução de 48% dos casos de demência.
Veja os 15 fatores de risco associados à demência precoce
Alguns dos fatores que já apareceram no relatório de 2020 também estão na lista relacionada à demência precoce, outros são exclusivos do novo levantamento. Veja abaixo os 15 fatores identificados pelos pesquisadores como de maior risco para a ocorrência de demência antes dos 65 anos.
Como já mostrado em outros estudos, pessoas que tiveram pouco ou nenhum acesso à educação formal têm maior risco de desenvolver demência. “A educação aumenta a reserva cognitiva, que é a capacidade do cérebro de fazer frente aos danos que sofre ao longo da vida”, explica o neurologista Paulo Caramelli, professor da Faculdade de Medicina da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG).
“Essa reserva cognitiva aumentada torna o indivíduo mais resistente ao aparecimento da demência. Se ela se manifestar, vai ser mais tardiamente”, diz o neurologista Ricardo Nitrini, professor titular sênior de neurologia da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo (USP).
Os especialistas destacam que manter os estímulos cognitivos na idade adulta, por meio do aprendizado de novas habilidades, como um idioma ou instrumento musical, pode ajudar na formação de reserva cognitiva, mas não são capazes de compensar totalmente a falta da educação formal caso a pessoa não tenha tido a oportunidade de estudar na infância e adolescência. “Nesse aspecto, nada é mais poderoso do que a educação formal”, afirma Caramelli.
É por isso que os especialistas defendem que a questão não seja tratada apenas do ponto de vista individual. “Não é apenas a pessoa querer estudar, isso precisa ser oferecido a ela, ela deve ser estimulada, deve haver uma educação de qualidade. E isso precisa de investimento público. Alocar mais recursos na educação das crianças serviria também como prevenção futura para demências”, diz o psiquiatra Jerson Laks, pesquisador do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq).
- Baixo nível socioeconômico
Pessoas com menor renda e que vivem em condição de maior vulnerabilidade sofrem com privações que também podem aumentar o risco de demência precoce. Uma delas é a própria dificuldade de acesso à educação formal, mas há outros problemas associados. “Esse grupo tem menos recursos educacionais, mas também uma alimentação pior e maior dificuldade para controlar as doenças crônicas”, diz Laks.
Os dois últimos fatores citados pelo psiquiatra aumentam o risco agravamento de doenças como diabetes e hipertensão, que, sem o devido controle, podem levar a danos vasculares no cérebro.
Pessoas de condição socioeconômica inferior também tendem a acumular menor reserva cognitiva. “Tem a questão da menor escolaridade e, por consequência, esses indivíduos têm trabalhos com menor estimulação cognitiva”, ressalta Caramelli.
A doença, segundo os médicos, provoca alterações metabólicas e vasculares que podem causar danos às células cerebrais mesmo que não haja sintomas ou um evento de maior gravidade, como um acidente vascular cerebral (AVC). Isso porque o diabetes e outras doenças crônicas aumentam o risco de problemas na chamada microcirculação, levando a pequenas lesões nas células do cérebro.
No estudo publicado no Jama Neurology, a associação entre diabetes e demência precoce foi encontrada somente para os participantes homens. Uma possível explicação, segundo os pesquisadores, é justamente porque representantes do sexo masculino têm mais complicações microvasculares do que as mulheres, o que pode levar a doenças dos pequenos vasos e demência.
Para evitar o desenvolvimento ou agravamento do diabetes, é importante reduzir o consumo de açúcar e de alimentos ultraprocessados. Para aqueles que já têm o problema, é essencial adotar um estilo de vida mais saudável e tomar as medicações necessárias para controle da patologia.
Assim como no caso do diabetes, a doença cardíaca também prejudica a circulação e pode favorecer o aparecimento da demência precoce. Estudos já demonstraram que ela pode reduzir o fluxo sanguíneo para o cérebro, aumentando o risco de lesões.
Para reduzir o risco de problemas no coração, a Organização Mundial da Saúde (OMS) recomenda medidas como a prática de atividades físicas por ao menos 150 minutos por semana, adoção de uma dieta saudável, rica em verduras e frutas e com baixa ingestão de sal e gordura, e evitar o tabagismo.
- Acidente vascular cerebral (AVC)
O AVC interrompe a circulação sanguínea em parte do cérebro seja por meio do entupimento de um vaso (AVC isquêmico) ou rompimento do mesmo (AVC hemorrágico). Em ambos os casos, há lesão cerebral e morte neuronal, o que aumenta o risco de demência.
As recomendações já mencionadas para prevenir e controlar problemas como diabetes e doença cardíaca também são capazes de reduzir o risco de AVC. Também é recomendado controlar a pressão arterial e os níveis de colesterol, e manter um peso adequado.
Reduzir a chance de um AVC é importante não apenas para a prevenção das demências, mas também a de outras sequelas e problemas associados ao evento. Hoje, o AVC é uma das principais causas de morte no País, com cerca de 100 mil óbitos por ano.
- Pressão baixa ao levantar-se
Outro fator de risco trazido para demência precoce trazido pelo estudo foi a ocorrência da chamada hipotensão ortostática, também conhecida como postural, que é definida pela queda de pressão arterial quando estamos deitados ou sentados e nos levantamos.
“Com essa queda significativa de pressão arterial, há uma redução do fluxo sanguíneo para o cérebro, o que também pode contribuir para lesões cerebrais”, explica Caramelli.
A hipotensão ortostática pode ter diversas causas, como desidratação, uso de algumas medicações que interferem na pressão arterial e doenças neurodegenerativas, como o Parkinson. É importante, portanto, investigar a causa do problema para adotar o tratamento disponível.
O uso abusivo e frequente de álcool é outro fator que lesiona as células cerebrais e aumenta o risco de demência precoce. Um estudo francês publicado em 2018 no periódico The Lancet Public Health já havia mostrado que pessoas com histórico de alcoolismo tinham três vezes mais chances de desenvolver demência do que os que não bebiam de forma abusiva.
A pesquisa explica que o consumo excessivo de bebidas alcoólicas disparam vários mecanismos prejudiciais ao cérebro. Em primeiro lugar, dizem os pesquisadores, o etanol tem um efeito neurotóxico. Além disso, o álcool pode causar deficiência de tiamina (também chamada de vitamina B1), fundamental para a manutenção de algumas funções cognitivas.
A deficiência de tiamina pode levar à síndrome de Wernicke-Korsakoff, caracterizada principalmente por confusão mental e perda de memória.
Curiosamente, a total abstinência de álcool também apareceu no estudo como um dos fatores de risco para o aparecimento da demência precoce, mas aqui os pesquisadores pedem atenção. “Abstêmios têm mais probabilidade de não consumir álcool devido a má saúde ou uso de medicamentos”, destacam os cientistas no artigo publicado no Jama Neurology.
Ou seja, o não consumo de álcool não necessariamente contribui para o aparecimento da demência, mas pode ser apenas um indicador de que a pessoa sofre de outros problemas de saúde que aumentam o risco de danos cerebrais.
Os médicos brasileiros concordam com a avaliação dos pesquisadores estrangeiros e dizem que, embora essa questão não tenha sido totalmente esclarecida no estudo em questão, há mais evidências dos prejuízos do uso de álcool do que de seus benefícios. Por isso, a orientação mais prudente é no sentido de reduzir o consumo e, para quem for beber, ingerir pequenas doses e optar por bebidas com menor teor alcoólico – cerveja e vinho, por exemplo, em vez de destilados como cachaça, vodca ou whisky.
De acordo com os pesquisadores, o isolamento social funciona como uma espécie de marcador da baixa reserva cognitiva, já que os indivíduos sem interação têm menos estímulos para o cérebro e maior tendência a desenvolver depressão.
“Participantes que visitavam amigos ou familiares uma vez por mês ou menos tinham uma associação maior com demência de início precoce do que pessoas que visitavam amigos ou familiares mais frequentemente”, escreveram os pesquisadores no artigo.
Por isso, dizem os especialistas, é importante manter vínculo afetivo com familiares e amigos e se engajar em atividades comunitárias ou coletivas. “Participar de um trabalho voluntário, ter um propósito, um objetivo de vida pode ser benéfico para o cérebro”, diz Caramelli.
A depressão costuma levar a um maior isolamento social que, como já mencionado acima, é um fator de risco para demência pela queda de estímulos cognitivos.
Ainda não está claro, porém, se a depressão, de fato, é um fator de risco para o aparecimento da demência ou se ela é, na verdade, um dos primeiros sintomas do problema. “Há uma grande discussão na literatura hoje se ela é fator de risco ou manifestação precoce, mas é fato que ela está associada a menor interação social e menor atividade cognitiva”, diz o professor da UFMG.
Ainda na lista de fatores de risco associados à redução de estímulos cognitivos está a perda de audição. “A pessoa com deficiência auditiva é privada de estimulação cognitiva, participa menos de conversas, interage menos e, progressivamente, vai ficando mais isolada”, explica Caramelli.
Se houver recomendação médica, o uso de aparelhos auditivos deve ser considerado caso possa melhorar a qualidade de vida do paciente.
- Força nas mãos reduzida
A redução da força de preensão palmar, que é a capacidade de apertarmos algo com as mãos de forma vigorosa, também foi associada a um maior risco de demência precoce quando considerada insuficiente,
Isso porque, segundo especialistas, esse é um indicador importante sobre o nível de força física, reserva muscular e estado de saúde geral. Os que têm melhor força de preensão palmar costumam ser aqueles que praticam mais atividade física, essencial na prevenção de eventos cardiovasculares, que aumentam o risco de lesões no cérebro.
- Deficiência de vitamina D
Níveis muito baixos de vitamina D – abaixo de 10 ng/ml – foram associados a um maior risco de demência precoce. Isso porque, segundo os pesquisadores, o composto age como um neuroesteroide (espécie de hormônio) que nos protege de processos neurodegenerativos.
Os médicos ressaltam que o achado não significa que todos devem fazer suplementação de vitamina D. Para a maioria das pessoas, os níveis do composto já ficam acima de 10 ng/ml somente com a absorção da vitamina proveniente da alimentação e da exposição ao sol.
- Altos níveis de proteína C-reativa
A proteína C-reativa (PCR) é produzida pelo fígado e pode ter seus níveis medidos por meio de um exame de sangue. Ela costuma ser usada como um marcador de processos inflamatórios. Segundo os pesquisadores, estaria relacionada a mais eventos cardiovasculares, daí sua associação com maior risco de demência.
Esse, porém, é mais um fator que os cientistas não conseguiram comprovar se está, de fato, associado a um risco maior de demência precoce ou se, na verdade, é um indicador de um processo já instalado de demência. Mais estudos são necessários.
- Portar variante específica do gene Apolipoproteína E (Apoe)
Esse é o único fator de risco incluído na lista dos pesquisadores que é de natureza genética. Pessoas que possuem o gene Apolipoproteína E (Apoe) com dois alelos (variantes) do tipo ε4 têm maior probabilidade de desenvolver demência precoce.
Pesquisas mostram que esses alelos favorecem a formação de placas de proteína beta-amiloide no cérebro, uma das principais características da doença de Alzheimer. Elas impedem que o gene Apoe cumpra seu papel de reparação neuronal.
É importante notar, no entanto, que a presença de alelos ε4 não garante que alguém desenvolverá demência, mas, sim, que o risco é maior. Estudos nacionais e internacionais estimaram que mais de 20% da população possui ao menos um alelo ε4 e certamente nem todos manifestarão a doença, por isso os médicos não recomendam a realização de testes genéticos para descoberta deste gene, pois o processo pode gerar angústia e ansiedade sobre algo que não necessariamente vai acontecer.
Principais tipos de demência precoce e seus sinais
Os especialistas explicam que, entre os casos de demência precoce, os tipos mais frequentes são a doença de Alzheimer e as demências frontotemporais.
O Alzheimer precoce, assim como sua versão mais tardia, também costuma ter como principal manifestação problemas de memória, mas, quando acomete pessoas mais jovens, é comum também o aparecimento de outros tipos de sinais.
“Pode haver outras manifestações como comprometimento da linguagem, das habilidades visuais e espaciais ou de funções executivas, como a capacidade de planejamento”, detalha Caramelli. Ele diz que, enquanto apenas 15% dos casos totais de Alzheimer não têm os primeiros sinais relacionados à perda de memória, esse índice sobe para 35% a 40% nos casos de Alzheimer precoce.
Já a demência frontotemporal, cuja maioria dos casos aparece antes dos 65 anos, manifesta-se principalmente em duas formas, segundo os médicos: “Ela pode afetar o comportamento social ou a linguagem, em um quadro chamado de afasia progressiva primária”, explica Nitrini.
No caso da afasia, detalha Mattos, a pessoa começa a esquecer palavras ou o significado delas ou perde a capacidade de sintaxe, ou seja, passa a ter dificuldade para elaborar frases com coesão e coerência.
Já no caso da demência frontotemporal do subtipo comportamental, há mudanças significativas nas atitudes do paciente. “É, por exemplo, um sujeito que era comedido e começa a falar palavrão, fazer piadas eróticas, gastar muito dinheiro em jogos, beber excessivamente”, relata o pesquisador do IDOR. “Isso acontece porque a demência afeta o lobo frontal do cérebro, responsável pelo controle de impulsos.”
Nitrini ressalta que, na ocorrência de quaisquer sinais sugestivos de quadros demenciais, é fundamental que o paciente e seus familiares busquem um especialista para investigação do caso e confirmação do diagnóstico, inclusive para avaliar se não se trata de um caso de demência reversível – quadros de comprometimento cognitivo causado por outras doenças, como hidrocefalia ou até depressão, e que podem ser revertidos quando a doença de origem é tratada.
Para os tipos de demência mais comuns, como Alzheimer, ainda não há cura, mas o tratamento com medicamentos, treinamento cognitivo e adoção de estilo de vida mais saudável pode desacelerar a progressão da doença.